16/01/16

O Anselmo Borges e a revolução na Igreja Católica

 

1/ No Cristianismo primordial, os bispos eram eleitos pelo povo cristão. Ainda no tempo de Santo Agostinho, os bispos eram eleitos. Mas a eleição dos bispos só era possível porque os cristãos constituíam uma minúscula minoria da população do império romano.

À medida que o Cristianismo se espalhava entre a população do império, incluindo, na nova fé, culturas heterogéneas em uma mesma comunidade, começaram a acontecer problemas com a eleição do Bispo. Ficou célebre o episódio da eleição do Bispo de Milão e a sua posterior deposição por um movimento popular sanguinário de cristãos lombardos (provenientes da Lombardia); e depois, o mesmo Bispo, em vez de ser eleito novamente, foi nomeado por uma comissão dita “representativa dos cristãos” e permaneceu no cargo até à sua morte natural.

Em todo o império, e à medida em que o Cristianismo ganhava mais e mais fiéis, as eleições dos bispos foram sendo substituídas por nomeações por parte do clero local, e sem interferência directa (embora indirecta) da comunidade cristã (do povo cristão); e a principal razão era a de que as comunidades cristãs do império romano eram culturalmente heterogéneas, e portanto não se entendiam quanto à eleição do Bispo. Por exemplo, em Milão, a comunidade cristã lombarda da cidade queria um Bispo lombardo; já a comunidade cristã lígure da cidade queria um Bispo proveniente da Liguria. E por aí afora.

Com o Concílio de Niceia, a eleição dos bispos foi definitivamente abolida.


O Anselmo Borges propõe aqui a eleição da hierarquia da Igreja Católica por parte de mais de mil milhões de católicos.

Quem conhece minimamente a história da Igreja Católica, não se deixa enganar pelo Anselmo Borges. A democracia representativa (e a participativa) só é possível a nível da nação (ver o que significa nação). Vemos, por exemplo, a dificuldade da democracia espanhola, com os seus movimentos nacionalistas locais — exactamente porque a Espanha não é uma nação, mas antes é um conglomerado de nações. Se houve qualquer coisa de positivo na Revolução Francesa foi a demonstração da identificação entre democracia e nação.

Mas dentro de uma mesma nação, a democracia é conflituosa, faz com que os nacionais se virem uns contra os outros — como aconteceu em Milão com a eleição do Bispo, no tempo de Santo Agostinho. E se extrapolarmos o princípio democrático, na eleição da hierarquia da Igreja Católica, para mil milhões de católicos de várias culturas e espalhados por todo o mundo, facilmente nos damos conta de que a utopia de Anselmo Borges é loucura.

2/ o Anselmo Borges diz que, para se ter uma noção ética correcta da vida sexual, é preciso que quem faz juízos de valor acerca da vida sexual não seja celibatário.

Esta posição faz lembrar a de Lobo Antunes:

“Eu me pergunto se um homem que nunca fodeu pode ser um bom escritor.” → António Lobo Antunes

O Rerum Natura escreveu aqui um bom artigo sobre o assunto; e eu também escrevi aqui qualquer coisa. Não consta que Fernando Pessoa, por exemplo, tivesse fodido; portanto, no critério de Lobo Antunes na estética (e o de Anselmo Borges na ética), Fernando Pessoa não pode ser um bom escritor. A ideia segundo a qual é absolutamente necessário ter determinadas experiências de vida prática para se obter uma sensibilidade estética apurada, é um sofisma. E o mesmo se aplica à ética.

3/ o Anselmo Borges propõe o fim da imposição do celibato aos sacerdotes católicos. Aqui, vou parafrasear Nicolás Gómez Dávila:

“A crescente dificuldade de recrutamento de padres deve embaraçar a humanidade, e não preocupar a Igreja Católica”. → Nicolás Gómez Dávila

A solução apropriada para uma humanidade embaraçada consigo mesma, é a promoção de diáconos (que podem ser casados ou casadas) em determinadas funções da Igreja, mantendo-se o celibato dos sacerdotes.

4/ o Anselmo Borges propõe que as mulheres sejam ordenadas sacerdotisas da Igreja Católica, e propõe mesmo que uma mulher seja “eleita Papisa”. Quer voltar ao tempo da papisa Joana.

A experiência recente da Igreja Anglicana, que efectuou reformas que incluem a nomeação de “Bispas” (mulheres casadas, heterossexuais ou lésbicas), veio demonstrar que Anselmo Borges está errado. Hoje, e depois das reformas, a Igreja Anglicana tem menos de 1 milhão de fiéis em um pais como mais de 70 milhões de almas. A reforma anglicana foi um fiasco. Esta diminuição do número de fiéis inclui as mulheres britânicas que se desligaram da Igreja Anglicana — e não só de homens, como é óbvio: foram as próprias mulheres que se afastaram da Igreja Anglicana, depois das reformas que pretendiam identificar as mulheres com os homens no seio de uma comunidade cristã.

5/ o Anselmo Borges pretende a eliminação dos mitos judaico-cristãos existentes no seio da Igreja Católica, por exemplo, erradicando a noção de “pecado original”.

O Anselmo Borges confunde mito, por um lado, com mentira ou falsidade, por outro lado. Para o Anselmo Borges, mito é sinónimo de mentira. A verdade, porém, é a que o mito não pode entrar pura e simplesmente na alternativa verdadeiro / falso. Apesar de imaginário ou ideal, o mito não pode ser reduzido à ilusão, ao erro, à mentira. O Anselmo Borges tem obrigação de saber isto, mas faz de conta que não sabe, para enganar o povo católico.

O que Anselmo Borges defende, através da erradicação da noção de “pecado original”, é a eliminação, no ser humano, do sentimento culpa — o que é uma impossibilidade objectiva. Sem sentimento de culpa (originário ou não), um ser humano é um robô. Ora, um robô não tem dignidade. Alegadamente em nome da dignificação do ser humano, Anselmo Borges defende a redução do ser humano a uma espécie de robô.

O que o Anselmo Borges defende, em suma, é uma Igreja Católica prometaica, em que o ser humano ocupa o vértice superior da pirâmide dos valores. Anselmo Borges está, para a Igreja Católica, como o Bloco de Esquerda está para a nossa sociedade: ambos são muito perigosos, porque aproveitam-se do espírito do tempo para convencer as pessoas de que não existem valores eternos.

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